Artigo: Por que é urgente a educação transformadora?

Por que é urgente a educação transformadora?

“Lavar a minha própria roupa, mamãe, é essa minha lição de casa”. Assim me aborda meu filho de seis anos, em um misto de alegria e estranheza, enquanto voltamos para casa depois da escola. Você pode até dizer: “E isso lá é coisa que se peça como lição de casa?” No meu entendimento, não há melhor proposta de aprendizagem que a participação em tarefas do cuidado de si e do seu entorno.
 
Mas, o que ele aprenderá com isso? Não deveria estar treinando o desenho das letras e adentrando o universo dos números? Como um estudante do primeiro ano, é fundamental que ele possa iniciar sua alfabetização e explorar as operações aritméticas. No entanto, a educação deve ser mais do que isso: “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, já diria Paulo Freire.
 
Vivemos tempos de desafios complexos e aceleradas mudanças, marcados por avanços tecnológicos, novas formas de nos relacionarmos (com outras pessoas e até com máquinas), polarizações e a incontornável emergência climática. O conhecimento formal apenas não nos preparar para o que está por vir e para o que já se apresenta como realidade. Veja bem, de forma alguma cabe negligenciar a importância da ciência; sabemos o quanto a sua negação resulta em tragédias.
 
O que proponho é que, tão fundamental quanto os conteúdos, é a promoção de uma educação que seja transformadora: que fomente a compreensão das crianças, adolescentes e adultos sobre seu lugar no mundo e seu potencial de mudança da realidade. Uma educação que crie condições para que todas a comunidade escolar pratique a empatia, colabore, debata, crie e que cada pessoa possa ter confiança em suas potencialidades e responsabilidade sobre os demais seres que habitam o planeta. 
 
Não estou projetando abstrações. A educação transformadora já é realidade ao redor do mundo. No Brasil, muitas escolas e mesmo organizações da sociedade civil trabalham nesta perspectiva. Elas estão espalhadas pelo território nacional e emergem em contextos plurais: regiões metropolitanas, periferias urbanas, comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas. Sobre como fazer, não há receita: são múltiplos os caminhos, assim como são diversos os contextos institucionais.

Às margens do igarapé do bairro de São Geraldo, região de alta vulnerabilidade social em Manaus, a Escola Municipal Waldir Garcia já se tornou referência internacional por sua atuação fundamentada na pedagogia do cuidado. Acolhendo estudantes não apenas da região, como também imigrantes e refugiados, a equipe compreende que cada criança e cada jovem tem seu tempo e seu ritmo de aprender. Para trabalhar de maneira inclusiva, romperam com uma série de elementos da educação convencional: no lugar de filas de carteiras, utilizam mesas compartilhadas que estimulam a colaboração; professores se portam como mediadores em vez de detentores do conhecimento e os estudantes, por sua vez, assumem papel central e ativo no processo de aprendizagem. 

Muitas dessas concepções e elementos não são estranhos à EMEI Gabriel Prestes, apesar dos quilômetros que separam essas duas escolas. Localizada na região central da cidade de São Paulo, a escola de Educação Infantil desenvolve uma proposta político-pedagógica fundamentada no diálogo com toda a comunidade escolar e em construções coletivas e colaborativas. A aprendizagem das crianças não se limita ao espaço físico da escola. Seu currículo transborda para o território do qual faz parte. Nas andanças pelo bairro, sob os cuidados da equipe pedagógica, as crianças vivenciam a cidade a partir de seu olhar de encantamento e curiosidade, sendo estimuladas a conviver com a diversidade e a se sentirem parte desse todo. 

Trabalhar o pertencimento também é fundamental para a Escola Pluricultural Odé Kayodê, da cidade de Goiás. Sua equipe parte da concepção de que a aprendizagem não se dá fora de um contexto real da sociedade, com suas diversidades e desigualdades. Por isso, valorizam especialmente os povos originários e invisibilizados do país – os indígenas, africanos e afro-brasileiros. A roda é um princípio e elemento central da escola. É em roda onde todos se vêem, começam cada dia, escutando estudantes, suas necessidades e desejos. Essa escuta é ponto de partida para o ensino de novos conteúdos e a investigação de conceitos. A educação não deve servir para que os indivíduos se adaptem à realidade. Ao contrário, deve construir aprendizagens significativas para que estudantes atuem nessa realidade buscando formas mais justas e diversas de se viver.

De Manaus a Goiás, passando por São Paulo, essas são apenas algumas iniciativas entre outras tantas que promovem a educação transformadora em nosso país. Em comum, partilham da concepção de estudantes como sujeitos diversos com direito ao desenvolvimento pleno de suas potencialidades, ativos em seus processos de aprendizagem e na transformação de suas realidades. 

Também compartilham barreiras, como a desconfiança inicial de famílias e comunidades, ancoradas numa ideia de escola que se restringe à instrução, a trasferir conteúdos, cujo sucesso se mensura exclusivamente por meio de provas e notas. Enfrentam também as mesmas limitações das políticas públicas, passando pela insuficiência da estrutura física das escolas, o não reconhecimento  das organizações comunitárias no processo educativo, até a falta de condições adequadas para o trabalho docente.
 
Se, por um lado, a educação transformadora já é uma realidade em contextos diversos, é fato que há ainda um longo caminho a se percorrer para que deixe de ser exceção, se limitando a um determinado número de organizações que perseveram cotidianamente em seu fazer. Tal caminho não é apenas necessário, é urgente, quando se pensa na dimensão dos desafios atuais e futuros e das soluções que o mundo já demanda e continuará demandando de nossas crianças e adolescentes. 

Felizmente, cada vez mais surgem movimentos e iniciativas que buscam fortalecer tais instituições, reconhecendo publicamente o valor de seu trabalho e buscando disseminar os diversos caminhos de se promover a transformação por meio da educação. Uma delas é o Escolas2030, programa global de pesquisa-ação, desenvolvido em dez países, que busca criar novos indicadores de avaliação, pautado nesta outra forma de se conceber e fazer a educação. A partir do entendimento de que professores devem ser ouvidos nas proposições sobre as políticas públicas educacionais, o programa incentiva a reflexão de educadores sobre suas práticas e articula redes de ensino e universidades para que tais conhecimentos pautem instâncias decisórias sobre a educação em nosso país. 
 
Voltando à lição de casa do meu filho, é difícil mensurar o quanto ele aprendeu ao lavar sua própria roupa naquele dia. Mas, uma coisa eu sei: o sorriso ao finalizar a lição revelou uma satisfação única de se sentir capaz, de contribuir. É a partir de pequenas tarefas como essas, que incentivam o cuidar de si, o autoconhecimento e o conhecimento do contexto em que estão inseridos, que estudantes como ele poderão se desenvolver plenamente como pessoas que entendem o seu lugar no mundo e sua responsabilidade para consigo, com os outros e com o planeta.

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