Vencendo a miopia e criando intimidade com fungos
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Fomos acometidos por um aumento vertiginoso da miopia desde o início da pandemia. Não é apenas metáfora, no sentido de que tenha ficado mais difícil enxergar o futuro. A ocorrência de fadiga ocular e a progressão de miopia têm sido registradas por oftalmologistas de todo o mundo. O fator preponderante é ambiental: as pessoas passam o dia todo interagindo com as telas e pouco tempo ao ar livre.
Você sabe que os olhos também têm músculos? Dentre eles os ciliares, que se contraem para focalizar objetos próximos e relaxam quando a visão busca objetos distantes. Comecei a prestar mais atenção nesses movimentos quando minha visão se deteriorou no início de 2021. Desde então, orientada por um médico, iniciei exercícios – uma espécie de relaxamento ocular. Mas, foi numa recente visita a Manaus (AM), depois de subir 242 degraus, que tive a certeza de poder novamente alargar meu campo visual.
Ao longo das várias plataformas da Torre de Observação do Museu da Amazônia e do topo de seus 42 metros de altura, sobre o dossel de uma floresta de 100 km2, meus olhos puderam finalmente brincar de perseguir o vôo das aves e adivinhar espécies de árvores que ali se pintam com várias tonalidades.
Fui a Manaus para participar de um processo de reconhecimento de Jovens Transformadores pela organização não-governamental Ashoka. Ouvi de todos eles, repetidas vezes, reflexões sobre a miopia dos forasteiros e dos governantes: “é preciso enxergar a Amazônia de baixo pra cima e então reaprender a planejar o seu futuro”.

Para os jovens amazônidas não se trata apenas de reconhecer os direitos e a diversidade cultural dos atuais 28 milhões de habitantes da região. Também é preciso romper com uma narrativa nacional, que preconizou a ideia de uma terra sem gente, um vazio a ser ocupado, negando a história de quase 200 grupos indígenas que vivem na Amazônia há mais de 11 mil anos e de muitos migrantes que foram largados à própria sorte na floresta com o fracasso dos planos de colonização, urbanização e construção de mega infraestruturas desde o período ditatorial.
Com o grupo de Jovens Transformadores da Amazônia, descemos da Torre e pisamos outra vez no chão da floresta para examinar as relações do ecossistema por outro prisma. Ali encontramos a pesquisadora Noemia Ishikawa e sua equipe do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia). Ela é especialista em micologia, o estudo dos fungos. Com a floresta sobre as nossas cabeças, Noemia nos instigou a expandir nossa subjetividade, esquadrinhando a floresta “de baixo para baixo”, com foco nas criaturas imperceptíveis para muitos de nós, mesmo os mais habituados a frequentar as matas.
E, de repente, quando os olhos ficam minimamente treinados a ver os fungos na complexidade da floresta, um novo mundo se descortina. Em apenas uma hora de caminhada por trilhas na floresta úmida, entendemos que os fungos funcionam ao mesmo tempo como recicladores de matéria orgânica e como conectores, por meio do micélio.
O micélio é uma rede imensa de filamentos, que se desenvolvem rapidamente como raízes, criando uma trama complexa no substrato da floresta, que se comunica com as plantas e distribui nutrientes. “É como se fosse a internet da floresta”, explica Noemia. “Por ela, as plantas podem comunicar, se cuidar, comunicar, intermediadas pelo reino dos fungos.”
O final dessa experiência recreativa que vem se popularizando pelo Brasil, conhecida como micoturismo, envolve a triagem e identificação das espécies de fungos coletadas. O pesquisador Jadson Oliveira, do Grupo de Pesquisas Cogumelos da Amazônia, cravou as 86 espécies que fomos pouco a pouco distribuindo sobre a mesa. Enquanto isso, a pesquisadora Ruby Vargas Isla, foi classificando as seis espécies comestíveis. Ruby é especialista em fungicultura e está realizando processos de inoculação in vitro de espécies comestíveis de fungos amazônicos, para o que há um potencial de mercado pouco explorado.

Há muito tempo os fungos têm papel crucial para a humanidade. Basta lembrar da descoberta acidental da penicilina – fungo inibidor da atividade bacteriana – por Alexander Fleming, em 1928. O antibiótico aumentou décadas na expectativa de vida desde os anos 1940, quando começou a ser administrado. Além de suas propriedades terapêuticas e alimentícias, os fungos hoje também estão sendo cada vez mais testados em embalagens e estruturas construtivas que são biodegradáveis. Portanto, é enorme o potencial dos fungos para a bioeconomia, especialmente a Amazônica, onde se encontram boa parte das 4 milhões de espécies ainda desconhecidas da ciência.
No entanto, a conclusão da atividade de micoturismo eleva nossa imaginação para outro plano: o cósmico, transcendendo a convivência transacional ou utilitária que podemos ter com esses seres. Nosso encontro com os fungos na Floresta Amazônica nos faz pensar nos “vastos organismos inteligentes” dos quais Ailton Krenak fala em suas reflexões sobre “A Vida não é Útil”. Quando começamos a classificar os fungos coletados de acordo com uma escala de tempo geológico, que nos traz do período cambriano até hoje, nos damos conta de que aquelas trilhas de reserva florestal urbana ainda guardam espécies que surgiram cerca de 500 milhões de anos atrás, a quem temos que atribuir a nossa presença neste planeta, pois sem os fungos e as plantas no meio terrestre, não teriam havido condições climáticas para nossa prosperidade. O que esse persistência e permanente adaptação dos fungos nos ensina? Como podemos perpetuar positivamente essa relação de aprendizagem e encantamento que Noemia propõe com a democratização do micoturismo?
É tempo de férias escolares. Você pode resolver começar o ano prevenindo a miopia, frequentando lugares que ainda têm florestas e fungos e outras constelações de seres vivos para serem vistos e apreciados. Se um parque ou uma comunidade perto de você oferece micoturismo ou outra atividade recreativa na paisagem, vá; desfrute. Se você quer conhecer mais o reino dos fungos, pode visitar a exposição temporária Fruturos – Tempos Amazônicos no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, que vai até junho de 2022. As telas podem e vão continuar se aprimorando como educação midiática na cultura cotidiana, como conta em seu artigo deste mês, Alexandre Sayad. Mas, neste verão, dê um descanso para as telas e presenteie seus olhos. Vá contagiar-se positivamente com novas perspectivas sobre o mundo que lhe cerca.