Artigo: Severina vai voltar para escola...

Olá, eu sou o João Souza. Empreendedor social, pesquisador e construtor de futuros mais inclusivos para o trabalho, transformação laboral, educação, diversidade e inovação social. A partir deste texto, sou também um dos novos articulistas aqui do site do Futura!

Mas pera aí, o que é um “articulista”?

É quem organiza ideias, pensamentos, reflexões e também opiniões na forma de textos explicativos e/ou educativos, também conhecidos por ai como “artigos”, que podem ser livres, técnicos, acadêmicos ou simplesmente um bate papo entre quem escreve e quem lê. A minha coluna será sobre isso: sobre como entender melhor o mundo e suas mudanças articulando perspectivas da cultura empreendedora, aprendizagem inclusiva, inovação e transformação social.

E para começar a nossa jornada, resolvi trazer para vocês a história da Severina, que vai voltar para a escola...

Bora lá!

Recentemente, participei do processo do design e execução de um programa de educação empreendedora para fortalecer micro arranjos produtivos locais (APL) de pessoas negras e periféricas que o FA.VELA, o negócio social do qual sou um dos fundadores, realizou para o Fundo Baobá. Este não é o primeiro programa de educação empreendedora que realizamos. Estamos nesse corre desde 2014, mas sempre gosto de dizer que nenhum programa foi igual ao outro! Claro que a parte metodológica tem uma estrutura mestra, mas sempre conseguimos personalizar uma coisa ou outra, seja por uma oportunidade de testar algo novo ou atender a demanda específica de um parceiro ou financiador.

FA.VELA
Foto: Acervo Fa.vela

Nesse programa trabalhamos com 57 micro APL´s, cada um deles com 3 participantes, ou seja, 171 pessoas com suas histórias, dores, amores e claro sonhos a realizar. Este conteúdo de estreia poderia focar nisto, concluindo sobre como foram os benefícios de fazer a educação empreendedora chegar a públicos historicamente marginalizados social e economicamente. Só que a história que quero contar é outra.

Um destes APL´s era formado por duas irmãs e uma outra parente. Uma das irmãs era a Severina. Eu, além de atuar na coordenação conjunta do programa, participei como educador e mentor. Como apaixonado por aprendizagem e educação, não abro mão de estar na ponta, dando aulas, ouvindo histórias e aprendendo com outros construtores de conhecimento que nem sempre estão no ambiente acadêmico ou formal. Foi neste contexto que a conheci.

Você deve estar se perguntando agora... Quem é Severina? E mais, por que ela vai voltar para escola?

Soube a história da Severina mais profundamente no evento de finalização do programa. Infelizmente ela não pôde participar e sua irmã representou o APL do qual faziam parte. Em um momento, foi aberta a fala para algum participante que quisesse compartilhar como foi sua experiência em participar do programa.  A irmã da Severina pediu a palavra e trouxe alguns agradecimentos pela oportunidade, comentou de como os negócios delas evoluíram pelo acesso aos conteúdos formativos, mas, mais importante, falou de como se sentiram representadas pela linguagem dos conteúdos e seus formatos – e este ponto é minha paixão, objeto de pesquisa e um diferencial que tentamos sempre imprimir em nossos programas: a “aprendizagem inclusiva”.

FA.VELA
Foto: Acervo Fa.vela

Para quem não está familiarizado com o tema, a aprendizagem inclusiva trata de como usar processos, linguagens, métodos e ferramentas para garantir acesso igualitário aos conhecimentos para todes, respeitando e adaptando as formas e formatos de informações e conteúdos às curvas de aprendizagem e jeitos de aprender de cada pessoa, grupo, e claro, adaptando e respeitando fatores culturais, raciais, de gênero e representatividade.

Acredito que para qualquer educador, falas como a da irmã da Severina são as que sempre queremos ouvir, mexe com nosso ego e mostra que estamos fazendo algo certo (ou tentando). Poderia ali ter me dado por realizado, mas de novo, né, gente!? “nenhum programa é igual ao outro”. Ela no final de sua fala me solta: “aprender desse jeito que vocês fazem é tão fácil, que a Severina falou que até vai voltar para a escola para tirar o diploma...”

Nossos programas são desenhados para permitir uma aprendizagem horizontal. Para nós como equipe, ainda podem ser oportunidades de refletir sobre temas e como eles podem se relacionar e/ou provocar alguns “porquês”. E o “porquê” da vez foi: Porque os grupos mais vulnerabilizados têm mais acesso a educação empreendedora do que a educação formal?

Este “porque” começou a pipocar na minha cabeça e joguei no Google: “dados sobre educação no Brasil atuais”. Um dos primeiros resultados que me apareceram foi um estudo liberado em 2019 pelo PNAD, que falava sobre taxas de evasão escolar e não conclusão do ensino médio por pessoas de 25 anos ou mais – além do índice de analfabetismo e sua relação direta com raça e acesso a renda – e este trecho me chamou atenção:

“Entre os principais motivos para a evasão escolar, os mais apontados foram a necessidade de trabalhar (39,1%) e a falta de interesse (29,2%). Entre as mulheres, destaca-se ainda gravidez (23,8%) e afazeres domésticos (11,5%).”

Em especial esses 39,1% que abandonaram os estudos por necessidade de trabalhar, pode se traduzir por empreender, já que o autoemprego é umas das principais fontes de geração de renda da população mais pobre do país.

Romantizar o empreender, o autoemprego e transformar o ingresso precoce no mercado de trabalho de jovens e precarização da vida com base na busca pela renda no empreendedorismo é um caminho perigoso e danoso, já que muitas vezes (ou na maioria delas) não é uma questão de escolhas.

Amartya Sem, o economista cocriador do IDH (Índice do Desenvolvimento Humano que você já deve ter visto por ai em alguma reportagem, artigo ou afins, uma medida resumida do progresso a longo prazo em três dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda, educação e saúde) lidera também um campo de estudos chamado Abordagem das Capacidades que tem como pilares duas dimensões: “Processos” e “Oportunidades”.

Volto aos conceitos em breve, pois cabe compartilhar que na minha jornada, observo sempre que as pessoas negras, pessoas que vivem em favelas e periferias urbanas e rurais, pessoas LGBTQIAP+ e outros grupos vulnerabilizados parecem ter mais acesso a educação para empreender do que a educação dita formal e acadêmica, aquela que permite se ver (e construir) num futuro mais inclusivo como cientistas, pesquisadores, técnicos, médicos, engenheiros e porque não astronautas. Com isto, apenas uma dimensão da abordagem das capacidades está sendo acessada, a das “oportunidades”, já que os processos que desenvolvem habilidades para as escolhas e preparam não estão conectados ou disponíveis para todes.

E quem nunca ouviu a frase: “Fulano só precisa de uma oportunidade.”

Será mesmo que é ela que falta? Porque oportunidade no singular não é escolha, esse “S” que falta no final diz muito mais do que mil palavras, afinas “oportunidades” remete a escolhas e estas podem ser plurais, diversas e inclusivas. Podem ser grandes, médias ou pequenas. Podem ser variadas e podem ser customizadas.

Precisamos olhar a educação de forma multidimensional, como ciência que é viva e que se constrói e se descontrói no dia a dia, no fazer, no quem ensina e quem aprende. Entender que ela pode ser para o trabalho, mas não pode nunca deixar de ser para o entender o mundo, para responder “porquês” e criar processos e oportunidades para novas e novos criadores de futuros mais diversos e inclusivos.

Futuros estes onde eu acredito que a Severina é uma educadora, uma mestra, uma professora e me relembrou não há muito tempo que o sistema da educação e aprendizagem no Brasil e no mundo precisa ser mais plural em todas as suas dimensões.

Espero vocês em breve, afinal, ainda temos muitos porquês a explorar!

João Souza é Co-fundador do Fa.vela, um Hub de Educação e Impacto Social que atua no ecossistema de empreendedorismo, tecnologia e inovação por meio de projetos e programas que fortalecem iniciativas de impacto socioambiental e econômico. Mestre em intervenção social, inovação e empreendedorismo pela Universidade de Coimbra, com passagens pelo setor público e privado com mais de 15 anos de experiência, atuando como e analista socioambiental e consultor em desenvolvimento social. Aqui no site do Futura ele vai escrever sobre Cultura Empreendedora.

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