Artigo: Devaneios de uma educação como direito assegurado de todes jovens

Devaneios de uma educação como direito assegurado de todes jovens

As edições de 2020 e 2021 do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) ficam marcadas na história da educação brasileira como exemplos nítidos da desigualdade de oportunidades entre as juventudes no Brasil. Em 2020 não foram poucos os relatos sobre a dificuldade de estudantes de escolas das redes públicas de ensino em se prepararem para a realização da prova. Na comparação com as condições de escolas privadas, estudantes de escolas públicas (em sua maioria, pobres, residentes das periferias do Brasil, negres e indígenas) enfrentaram um abismo em relação à sua possibilidade de preparação para o Exame Nacional e também para outros vestibulares. 

Isso não significa que essas desigualdades não existissem antes, como apontam diversos estudos, o que a pandemia fez nos últimos dois anos se resume a um acirramento de desigualdades sociais pré-existentes: no acesso dos direitos à moradia, saúde, saneamento básico, mobilidade, entre outros. E no campo educacional essa variável não tomaria rumo distinto. Em 2021, além da prova ter o menor número de inscrições desde 2007, foi observável também uma queda de 50% de candidates PPI (pretes, pardes e indígenas) inscrites no ENEM. Impedimentos em relação à obtenção da isenção da taxa de inscrição para estudantes que não compareceram à última aplicação do exame foram mais uma forma de distanciamento das juventudes dessa, que é a principal porta de ingresso no ensino superior brasileiro. 

Eu mesma ingresso em Ciências Sociais na USP em 2017 primeiramente por conta do SISU. Este que é, junto do PROUNI, um sistema importante por sua capilaridade em todo o país e expande os horizontes de jovens em relação às oportunidades de formação educacional e futura atuação profissional. Me recordo de me sentir em meio a um parque de diversões com tantas possibilidades de cursos e universidades dispostos no SISU e PROUNI depois que tive acesso à minha nota do ENEM. E se eu quiser cursar Engenharia Florestal na UFAM (Universidade Federal do Amazonas)? Quem sabe Artes Visuais na UFRB (Universidade Federal do Recôncavo Baiano)? Ou Pedagogia na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco)? As possibilidades me pareciam infinitas e mesmo que evidentemente apenas “passar” no curso não garantisse minha graduação - precisamos pautar também permanência estudantil - simplesmente observar as alternativas que existiam ali já me preenchia de entusiasmo.  

Três estudantes em uma biblioteca
Foto: Cottonbro no Pexels

Me pergunto: quantes jovens tiveram essa simples chance de vislumbrar caminhos futuros tomada, por conta das desigualdades de acesso à educação que atravessam o Brasil nesse momento? 

Para minha avó, que estudou até a quarta série do Ensino Fundamental, a alegria de vislumbrar o ensino superior como algo acessível era compartilhada. E tenho a memória de sua fala “Nossa, filha, é fácil assim mesmo?”. Embora eu viesse de um ano intenso de estudos em um cursinho popular e tivesse um bom histórico como aluna das escolas públicas estaduais pelas quais passei, não vou negar que podia ser mesmo um tanto incrível sentir que a universidade se colocava à minha frente de um jeito tão concreto. A primeira vez que entrei na Universidade de São Paulo foi para fazer minha matrícula: mesmo tendo vivido a vida toda na mesma cidade do campus em que hoje estudo, a famosa USP era colocada no plano discursivo de professores no meu Ensino Médio como um lugar inacessível.  

As iniciativas de cursinhos populares desempenham uma função importante, sobretudo entre jovens nas periferias ao demonstrarem que o ensino superior é uma possibilidade tangível. Muitas vezes complementando a formação ainda insuficiente que recebemos no ensino regular de escolas públicas, onde questões estruturais, curriculares e de falta de investimento desestimulam estudantes a continuarem seus estudos. Esses espaços contribuem não apenas em termos conteudistas, mas também frequentemente com a constituição da autoestima de jovens ao trazerem um vocabulário que aproxima perspectivas antes longínquas e nos localizam socialmente sobre a importância de galgarmos a continuidade da educação.  

Os vestibulares, sinônimos recorrentes de reafirmação da lógica meritocrática, são colocados para estudantes de cursinhos populares como um passo sim importante, mas dentro de uma jornada muito mais ampla e coletiva de garantia de direitos. Quando eu passei na universidade, mesmo que não de forma literal, toda minha família passou junto comigo: minha mãe, meu irmão e minha avó que estudou até a quarta série. 

Estudantes em uma sala de aula
Foto: Andy Barbour no Pexels

Uma reflexão que faço continuamente pensando sobre movimentos culturais e da educação, é sobre como estes acompanham e representam os tempos vividos na sociedade de modo estrutural. A efervescência dos pré-vestibulares nas comunidades periféricas e faveladas Brasil afora, especialmente nos anos 2000 refletia o cenário oportuno de crescimento de investimento na educação por parte do governo, junto da ampliação de formas de ingresso no ensino superior. Entre 2003 e 2014 foram criadas 18 novas universidades federais e 173 novos campi universitários, além de termos nestes anos a consolidação de políticas públicas como o PROUNI, SISU, FIES e a implementação da Lei de Cotas para reserva de vagas de estudantes negres e indígenas. 

O que temos no cenário presente é um contínuo desmonte dessas conquistas de políticas públicas que eram ainda tão recentes. Ao contrário do investimento, desde 2016 severos cortes e congelamentos de “gastos” viram rotina. Dentre esses, o último mais chocante recomendado pelo Ministério da Economia chega ao corte de quase 90% das verbas que seriam dedicadas à pesquisa no país, um soco na jugular de pesquisadores e da ciência no Brasil. 

Não gostaria de terminar essa coluna em tom pesaroso, falar de problemas é algo realmente muito fácil na conjuntura vigente. Mas, de fato, se torna um tanto difícil esperançar em contextos tão catastróficos que se impõem e devoram especialmente as chances de futuros para as juventudes brasileiras. 

Deixo esses últimos parágrafos como espaço de construção de utopias, porque elas hão de voltar a povoar nossas mentes e corpos, ou futuro realmente não teremos. Assim como as políticas públicas ao longo da penúltima década animaram cursinhos, que possamos tomar um sopro de vida ao observar estudantes negres e indígenas que, como eu, ocupam as universidades hoje. Com nossos corpos e saberes, buscando ressignificar espaços que por tanto tempo nos foram negados e construindo outras epistemologias para além daquelas que já dominam a academia e os rumos do mundo há séculos. 

Na graduação tive a felicidade imensa de dois encontros: o primeiro, com um grupo de extensão chamado Sociologia em Movimento que com base na pedagogia de Paulo Freire ministra oficinas de Sociologia em escolas públicas estaduais de São Paulo. O segundo foi encontro gestado junto de dois queridos amigos, Nuno Junior e Ygor Peniche. Iniciamos uma competição de poesia chamada Slam USPerifa, com o foco de recepcionar estudantes negres e indígenas que adentravam à USP no primeiro ano de vigência da política de cotas étnico-raciais no vestibular da FUVEST. O slam com grito “Espaços negados, agora ocupados: Slam USPerifa!” se tornou mais que um evento entre estudantes das Ciências Sociais para compartilhar poesia e acabou povoando outras faculdades, institutos e espaços estudantis da universidade. De um evento com foco em estudantes da USP, esse passou a ser um espaço agregador de pessoas de diferentes origens, desde estudantes de cursinhos pré-vestibulares do campus, até poetas e público de outras partes da cidade que descobriam ao pisar pela primeira vez na Universidade de São Paulo por conta da poesia que esse é um espaço público, de todes nós.  

Vivendo no momento presente, atravessado de cortes de verbas inconcebíveis, dizeres de ministros da educação sobre a universidade não ser direito de todes e desigualdades abissais se aprofundando desde a educação básica: que aproveitemos o alinhamento do céu com o centenário do patrono da educação brasileira para gestar movimentos distintos da horda que ruma para o precipício em si própria. A educação é o caminho inicial para emancipação da humanidade de si mesma, que jamais percamos isso de vista. Crucialmente para jovens, criar outras possibilidades de existência no âmbito da educação formal é importante e fora dela também. Nos eduquemos e lutemos pelo direito de todes de se educarem, se emanciparem, vislumbrarem caminhos. 

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