Artigo: Não é desastre natural

Nas últimas semanas, moradores da Bahia, Piauí, Maranhão, Tocantins, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e da Grande São Paulo enfrentaram deslizamentos de terra e inundações de grandes proporções. Diante das perdas humanas e materias, muitos ainda insistem em chamar esses eventos de “desastres naturais”. A combinação desses dois conceitos é tão descabida quanto perversa nestes casos. Faz as pessoas acreditarem que tais desastres são inevitáveis quando, na realidade, são socialmente calculados. 

Em última análise, o que determina se um evento climático ou geológico é ou não é um desastre são a sua localização e o nível de preparação que as pessoas têm para lidar com seus efeitos. A escala do desastre nem sempre está correlacionada à magnitude do evento.  

Erupção vulcânica em Tonga 

Quando o tsunami causado pela erupção do vulcão Hunga Tonga-Hunga Ha’apai atingiu o arquipélago de Tonga, no Oceano Pacífico, em meados de janeiro, a paisagem das ilhas mais próximas foram cobertas por cinzas, a comunicação e o tráfego aéreo foram interrompidos, a água ficou imprópria para beber e três pessoas morreram. É difícil racionalizar quando um evento devastador como este acontece. Mas, é importante entender que sociedades podem definir, num esforço coletivo, o nível de risco que querem correr à medida que conhecem e se assentam sobre um território.  

Nas imagens de satélite, a erupção do Hunga Tonga se assemelha a uma explosão nuclear. Segundo a NASA, o vulcão desencadeou uma onda de choques 500 vezes maior que a bomba de Hiroshima. Embora a velocidade da propagação das ondas do tsunami tenha batido recordes históricos, o evento não é exatamente uma surpresa para quem vive na região. Tonga se encontra dentro do Anel de Fogo do Pacífico, onde as placas continentais se encontram, provocando uma atividade sísmica intensa, numa área com mais de 450 vulcões ativos ou temporariamente adormecidos. 

Vulcão em erupção

Ciente do risco, a população de Tonga faz simulações de tsunami, terremotos e ciclones com frequência. Viver em zonas de risco requer um estado de prontidão permanente, além de um certo entrosamento com o ambiente que permita ler precocemente os sinais de alerta. Em Tongatapu, a mais populosa ilha de Tonga, moradores relataram que algo parecia estar errado desde o início do verão. Um cheiro de enxofre pairava no ar. A água do porto da capital girava em redemoinhos. E, pequenas erupções foram detectadas no dia anterior à grande erupção.  

Então veio um “trovão” ensurdecedor e, quem olhou para o céu, notou centenas de aves voando em todas as direções. Os relatos são de medo, embora não houvesse dúvida: aquele era o momento de deixar as zonas costeiras da ilha e se refugiar nas partes altas. A polícia ajudava a escoar o tráfego, enquanto a coordenação de desastres de Tonga se comunicava com a Cruz Vermelha na região e articulava a ajuda internacional para receber suprimentos.  

A pronta reação da população na ocorrência de eventos extremos salva vidas. Já as determinações sobre o tipo de construção mais resiliente para a região, a adaptação de infraestruturas críticas (água, energia, saneamento, telecomunicações, transporte, hospitais, etc.) e a definição de quem é responsável pelo que, onde e como num momento de crise, tudo isso minimiza muito os prejuízos e o nível do desastre, facilitando a recuperação dos serviços básicos. 

Negar a “naturalização” dos desastres, como enchentes e deslizamentos que matam e deixam milhares de desabrigados todo verão no Brasil, não é o mesmo que negar que esses fenômenos façam parte de processos naturais. Inundações, por exemplo, são movimentos corriqueiros dos rios. Não haveria problema nisso não fossem as intervenções humanas que desviam e confinam as águas, impermeabilizam as superfícies de absorção ou se sobrepõe às áreas de várzea. A questão é por que atribuir uma condição “natural” aos desastres quando eles têm dimensões sociais, políticas e econômicas? 

Percepção moldada pela domesticação da natureza 

Arquitetos paisagistas como Dilip da Cunha, em seu livro The Invention of Rivers (2019), mostram como ao longo da História, desde a Grécia Antiga, vão se “inventando” rios em mapas. Rios como linhas rígidas, desenhadas em um momento específico do ciclo hidrológico, pressupõem corpos d’água que nascem e fluem com obediência rumo a um destino, respeitando as margens que marcam uma distinção imaginária e artificial entre água e terra.   

E linha após linha, em sucessivos impulsos de domesticação das paisagens fluviais foram se instalando infraestruturas de urbanização sobre as planícies inundáveis - retificando, canalizando, impermeabilizando - sem levar em conta a natureza dinâmica dos rios.  

Ruas inundadas após chuva

Foi-se desqualificando a propensão de todo rio a inundar porque a vida social se dissociou desse ciclo sazonal de chuvas e cheias. As zonas alagáveis tornaram-se lugares inconvenientes, perigosos, lugar de sofrimento, de perdas e danos, morada dos excluídos. O termo “marginal” ganhou sentido pejorativo. Quando a linha entre a terra e a água é apagada pelas chuvas, produz-se o desastre. Mas, esse desastre não tem nada de natural. Ao contrário, ele é um desastre artificial, resultado de um desenho desastroso da relação com o sistema hidrológico.  

Em 2016, mergulhei no rio Xingu. Queria entender os impactos da Usina de Belo Monte sobre a população atingida pela barragem. Antes de minha visita, havia encontrado um dos primeiros mapas da Volta Grande do Xingu, produzido pelo Príncipe Adalberto da Prússia, durante uma expedição em 1842. O mapa era tão detalhado quanto perturbador por apresentar um Xingu confinado à linha, onde a natureza se rende ao desenho humano. 

Nessa mesma viagem de estudos, conversei com famílias que haviam sido deslocadas para reassentamentos urbanos em Altamira, construídos pela concessionária de energia. A maioria das pessoas havia sido removida das margens do rio, no centro da cidade, para a periferia, cerca de 2km do rio. Antes da remoção viviam em moradias precárias, principalmente pela falta de saneamento. Mas, não enfrentavam a a fome, nem a depressão, relatadas por muitos no reassentamento. Eram pescadoras, barqueiras, tinham de alguma forma um modo de vida conectado ao rio. O afastamento da água tirou o chão daqueles cidadãos que tinham uma relação de trocas múltiplas com o rio, sua conexão com o mundo.  

Durante as visitas, dei lápis e papel às pessoas e lhes convidei a desenhar: o que é o rio pra você? Elas desenharam peixes, barcos, aves, crustáceos, habitações, mulheres, comunidades, espíritos. Mas ninguém desenhou uma linha sequer para se referir ao rio. Para eles, o desastre não era o rio, tampouco as cheias, mas as linhas esquadrinhadas pelos engenheiros e as autoridades que barraram o rio, que o transformaram numa grande infraestrutura. O desastre é a linha!

O que camuflam as linhas?   

O desejo de dominar as várzeas. Drenar. Higienizar. Transformá-las em tecido urbano, espaço de expansão imobiliária, infraestruturas de energia, saneamento, irrigação, vias de circulação de pessoas e mercadorias. É a adoção de um modelo que apresenta uma aversão à natureza, no qual a “naturalização” do desastres tem lugar. Nas palavras do arquiteto e urbanista José Bueno, as linhas configuram cidades “biofóbicas”, que sufocam e depois esquecem seus rios. 

Mas, há antídoto contra a perda de memória. Rios e Ruas, co-fundado por Bueno em São Paulo, é um dos movimentos de resgate da malha de rios soterrados. A organização oferece uma oportunidade para se engajar na construção de uma cidade que quer se reconectar com seus corpos d’água. Movimentos de revitalização das águas têm brotado também em outras cidades do Brasil, como Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre. Deve haver um perto de você. E se não houver, que tal fundar um novo movimento? 

Uma pegada de um animal em um solo seco

Mudanças climáticas 

É certo que os eventos climáticos extremos que já estão aí vão afetar mais profundamente aqueles à margem dos rios, dos oceanos e principalmente da economia. São eventos com potencial de ampliar ainda mais o fosso social.  

Em momentos de calamidade pública, governos tendem a favorecer grandes empresas para a reconstrução de áreas afetadas. Empresas que continuam a reproduzir um modelo “biofóbico” de cidade. Frequentemente, resulta que as  áreas destruídas por eventos extremos são reconstruídas para grupos com maior poder aquisitivo, enquanto os principais afetados enfrentam a escassez de moradia, salários mais baixos e aumento da estigmatização.  

Tudo indica que já não temos muito mais tempo de evitar os eventos extremos. Os investimentos em infraestrutura de energia renovável e redução do desmatamento são insuficientes no Brasil e no mundo. As mudanças climáticas estão em marcha.  

O ano de 2022 é crucial para reconduzir o Brasil à uma posição de destaque no enfrentamento das mudanças climáticas. Conheça e discuta os programas de seus candidatos nestas eleições. Que planos têm para os rios e as florestas? Como pretendem descarbonizar os sistemas alimentares, os transportes, a energia? Como vão dinamizar a bioeconomia do Brasil?  

Enquanto isso, você pode conhecer, criar e participar de soluções que reduzem as emissões de gases de efeito estufa ou preparam uma localidade para responder aos impactos das mudanças climáticas. Como ponto de partida, você pode acessar o SEEG Soluções, uma plataforma criada pelo Observatório do Clima, que elenca 87 soluções para os setores de Transportes, Energia Elétrica, Resíduos, Agropecuária e Mudanças de Uso da Terra e Florestas. Muitas dessas soluções garantem a segurança hídrica nas cidades e trazem exemplos concretos de aplicação de políticas orientadoras da ação. 

É claro que ações como essas dependem do comprometimento do poder público. Mas tudo começa com a mobilização de algumas pessoas transformadoras que lideram a mudança para o bem de todos. Pode ser você. 

Ajude o Co.Educa a evoluir

O que você achou desse conteúdo?