Artigo: (Sobre) Viver na brecha

A primeira vez que ouvi Luiz Antonio Simas falar sobre “culturas de síncope” eu entendi que só chegamos aqui, porque aprendemos a driblar os muros da vida e que se eu quisesse continuar jogando, eu não tinha que pular os muros, e sim driblá-los.  

Simas vai trazer esse conceito a partir de análises sobre o samba, entendendo assim que síncope é uma alteração inesperada no ritmo, causada pelo prolongamento de uma nota emitida em tempo fraco sobre um tempo forte. A síncope se faz presente entre os vazios, ela aparece na brecha. Ela é aquele respiro que nos possibilita ir adiante por uma outra direção. Ela sou eu, você, ela é o drible que fazemos para não cumprir com alguma estatística que nos foi marcada por conta da nossa cor, da nossa classe social, do nosso gênero e orientação sexual. 

Desde muito nova eu percebi que a vida iria me exigir resistência, resiliência e paciência. Como grande parte das crianças negras eu sempre me senti inferior. Na busca de tentar ressignificar a minha presença nos espaços, eu sempre foquei muito no estudo, o que não é um problema, mas pode se tornar quando você vira refém da sua própria estratégia.

Uma criança em uma sala de aula

Na escola onde estudava existia uma ação em que todo semestre os melhores alunos da turma tinham suas fotos colocadas no mural. Estar no mural, do lado de fora da escola, se tornou a minha grande obsessão. Por um semestre eu foquei em apenas estudar e fui a melhor aluna da turma, porém naquele semestre as fotos não foram alteradas, pois a coordenadora que fazia isso quebrou o braço e ninguém assumiu essa função.  

Eu nunca esqueci dessa história e da frustração que senti, pois tudo que eu queria era ser reconhecida, eu queria ser a melhor em algo e que todo mundo visse, já que o meu sentimento era de que eu não era vista. 

Encontrar as brechas

Não acho que a gente não tem que se desafiar ou buscar ser o melhor, o que eu quero chamar atenção é como esse processo pode ser desumanizante, principalmente, quando estamos falando de pessoas negras, porque os muros são eternos e as marcas que o racismo estrutural deixa em cada um, muitas vezes, dão a sensação de que existem muros intransponíveis e aí que, ao meu ver, precisamos encontrar a síncope, a brecha. 

Essa narrativa de “Vai lá e prova” é exaustiva, não é boa para ninguém. Crescemos “acostumados” a dormir menos que precisamos, a correr mais do que devemos, a ser mais forte do que podemos…tudo em nome do reconhecimento, do sonho de um dia poder “ser alguém”, acreditando em um mito da meritocracia que só faz com que a gente viva cansado e frustrado. 

Ao chegarmos aos espaços que almejamos, muitas vezes, percebemos que vencemos a estatística, mas não vencemos o espelho, que ainda nos desafia diariamente a acreditar que o mundo também é nosso. E está aí nesse sentimento de vazio, de falta, que a brecha se faz necessária. 

A criação a partir da brecha sempre foi a nossa estratégia de sobrevivência. Nossos ancestrais seguiram sua fé, montaram suas redes, cantaram suas músicas, tudo a partir da brecha. Afinal, foi o drible de um homem negro que apresentou o Brasil pro mundo, foi na brecha que eu cheguei nessa coluna e em todos os outros espaços. Será pelo prolongamento de uma nota emitida em tempo fraco sobre um tempo forte que iremos viver mais um ano que se apresenta. Sempre é na fresta que a possibilidade de um novo amanhã se apresenta, esteja atento. 

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