Ilha do Combu: crise climática e desafios na colheita do açaí
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Na Ilha do Combu, em Belém (PA), a comunidade enfrenta desafios para o acesso a serviços básicos ao mesmo tempo em que lida com a instabilidade do trabalho na produção do açaí. Por conta da oscilação de preços, sazonalidade e intermediários, as famílias ribeirinhas seguem dependentes dessa produção sem aproveitar integralmente o potencial econômico gerado pelo “ouro preto” da Amazônia.
Ouro preto da Amazônia: A amarga realidade dos produtores do açaí que conquistou o mundo
Enquanto o açaí paraense movimenta milhões, ribeirinhos enfrentam desafios e trabalho árduo para manter a tradição que sustenta suas famílias e impulsiona a economia local

Belém do Pará, cercada pelas águas do Rio Guamá e da Baía do Guajará, é composta por 42 ilhas, onde a produção de açaí é a principal fonte de renda para as comunidades ribeirinhas. O Pará responde por 90% do açaí consumido no Brasil, com 1,7 milhão de toneladas de produção. Na exportação, o estado envia 65 milhões de toneladas do fruto, gerando US$ 47 milhões em 2023. Porém, apesar de movimentar grandes valores, essa cadeia produtiva proporciona apenas 598 empregos formais em todo o estado. Os dados são da Nota Técnica - Conjuntura da Economia do Açaí 2024 divulgada pela Fapespa (Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas).
Valdecir Miranda do Nascimento, o Seu Vadico como gosta de ser chamado, faz parte do grupo dos trabalhadores informais do açaí. Dos seus 59 anos de vida, mais de 50 foram dedicados à colheita do fruto considerado o ouro preto do Pará.
“Isso aqui é tradição, eu aprendi com meu avô. Comecei muito cedo, muito cedo mesmo. Com 3, 4 anos eu ia para a escola e no sábado para o mato. Eu tinha uma peconha e rasa pequeninha que cabia só um pouco de açaí. Quando eu era um pouco maior, já ganhava R$ 0,25 centavos por dia no trabalho”, conta.
Antes das seis da manhã seu Vadico já está entrando nos açaizais com seus instrumentos de trabalho: Terçado, peconha e paneiro, os dois últimos feitos da palha da própria palmeira. No alto da safra do fruto ele sobe e desce cerca de 40 vezes no açaizeiro, na entressafra este número cai pela metade.
“Na safra tem gente que sobe umas 70 vezes ou mais no açaizeiro por dia. Tem que vir bem cedo, com o calor que tem feito o açaizeiro está esquentando e ninguém consegue subir quando o sol está forte pois queima a mão. O que é colhido pela manhã às 9h já tem que estar no Porto da Palha”, diz fazendo referência a feira do açaí que acontece no Porto da Palha no bairro da Condor em Belém.

As mãos calejadas e os pés calçados em um sapato envolvido em um pedaço de borracha de pneu fala de um homem que precisou se adaptar para seguir vivendo no território de seus antepassados conservando a tradição familiar.
“É um trabalho pesado e um pouco complicado. Quando a gente quer ter uma produção melhor, tem que tirar o dia inteiro aqui. A gente tira duas basquetas agora de manhã, dá uma folga, quando for à tarde tira mais uma ou duas. E quando chega de manhã a gente sai daqui. O nosso açaí é um açaí de mais qualidade então ele é mais procurado”, afirma Vadico.
Seu Vadico não tem açaizal, sendo assim ele colhe nas terras de sua prima em um sistema que eles chamam de meia: tudo que ele colhe é dividido em partes iguais com a proprietária do terreno.
“Eu tiro uma rasa pra mim e uma para o dono, porque o mato é deles. Quem me dera ter um mato meu! Tirava uma basqueta todo dia. Faço R$120 por dia, se fosse tudo meu, com R$70 eu fazia as despesas de casa e guardava R$50. Mas é na meia: metade pra mim, metade pra eles. Dos R$120, vinte vai pra lancha, sobra R$100, que dividimos. Essa é a dificuldade de muita gente que tá nesse processo”.
Como a renda é baixa, seu Vadico precisa trabalhar dobrado para garantir o sustento de sua família. Além de colher e vender o açaí, ele pesca e faz serviços de carregador de carga no porto para complementar a renda familiar.
“Vi na televisão uma artista falando que o açaí está caro. Eles acham que está caro lá, mas eles não sabem como está caro pra gente que trabalha com isso. O açaí está sumindo, não fica aqui, até a gente tem que comprar e olha o tanto de trabalho que temos para eles tomarem o açaí deles lá”, finaliza.

As terras que seu Vadico trabalha são de sua prima Ivanete dos Santos Nascimento, 66. Nascida e crescida nas águas do Rio Guamá, dona Iracema também herdou da família o trabalho com o açaí.
“Na minha família a gente sempre trabalhou com açaí, com cacau, com seringa, com andiroba. Meu pai era uma pessoa que nunca estudou mas ele articulava bem as coisas. Tinha o período do açaí, quando não estava na safra era andiroba, seringa e cacau. Ele também fazia roça. Derrubava pequenos pedaços e nesses pequenos pedaços ele plantava legumes que levava para vender no Ver-o-Peso ", lembra.
Dona Ivanete começou a ajudar o pai na colheita do açaí aos 8 anos de idade. Ela conta que as dificuldades para estudar eram muito grandes, como a escola era longe e de difícil acesso, com o ensino apenas até a quarta série e nenhuma ajuda da prefeitura para os alunos se deslocarem para o centro da cidade estudar muitos paravam e seguiam os passos paternos de trabalho na roça.
“A vida aqui antes só era uma vida meio pacata por causa das dificuldades médicas, dificuldade de escola. Da quarta série você tinha que ir para Belém morar na casa dos outros, trabalhar em casa de família para poder estudar, ou então, viver a vida de roça”.
A vida de subir e descer em açaizais para Ivanete acabou cedo, aos 17 anos, a família continuou trabalhando com açaí, mas agora a jovem ajudava com as outras etapas da produção. Subir nas palmeiras de açaí ficou para o marido e depois para os filhos. Hoje o esposo de Ivanete não colhe mais açaí por conta de problemas de saúde, os filhos já estão crescidos com suas próprias famílias e trabalhando em suas áreas. “Não tenho quem tire açaí pra mim o jeito é pagar de meia, aí fica assim, um pouco pra cada um. Mas quando o açaizal é da própria pessoa que colhe é melhor”.

Os frutos colhidos nas ilhas de Belém são vendidos nas feiras do açaí que funcionam na feira do Ver-o-Peso no centro da cidade e no Porto da Palha, um pequeno porto de embarque fluvial localizado no bairro da periferia de Belém. A comercialização acontece todos os dias de madrugada. Centenas de pessoas circulando, vendendo e comprando.
Um personagem importante deste meio é o carregador: ele é responsável por retirar o fruto do barco e levar até a área de comercialização. Para cada basqueta ou paneiro o carregador recebe R$5,00, para que no final da manhã ele leve para casa R$150 é necessário fazer o percurso 30 vezes.

Outra figura que faz parte do cenário da produção do açaí é o atravessador. Muitos produtores das ilhas não tem como escoar a sua produção para a comercialização na cidade e os vendem para o atravessador a um preço mais barato do que o de mercado, o atravessador por sua vez recolhe esses frutos e os comercializa diretamente com os batedores de açaí na cidade ou para as empresas de beneficiamento do fruto para exportação.
Marcos da Conceição mora na Comunidade Remanescente de Quilombola de Itacoã no município de Acará. Ele trabalha há vinte cinco anos colhendo açaí. Há nove anos Marcos comprou um barco e começou a comercializar o seu açaí diretamente nas feiras de Belém. Como muitos produtores não possuem embarcação, ele viu uma oportunidade para expandir seu trabalho comprando os frutos dos produtores das ilhas e revendendo em Belém.
O açaí é um trabalho de risco por conta da oscilação nos preços e fragilidade do fruto. O fruto colhido precisa ser processado em até 24h. “O açaí, ele oscila por dia e por hora. O açaí de madrugada muitas das vezes ele dá 200 reais a rasa, de manhã ele vai pra 100 reais. E assim como ele pode dar 100 de madrugada e ir pra 200 de manhã. É um preço que oscila muito. É um produto de risco para quem compra, para quem é atravessador. Eu já perdi dinheiro, de comprar e vender a qualquer preço porque não dá para retornar com ele que estraga”. O atravessador acredita que a grande procura externa pelo fruto melhorou a vida do ribeirinho.
“O açaí melhorou a vida do ribeirinho que trabalha com açaí. Se você for fazer uma análise de 20 anos atrás, quando o pessoal trabalhava com roça, com outros produtos, banana, verdura, carvão, a gente tinha uma vida muito difícil. Passava fome, não tinha uma casa que prestasse, se vestia mal, não tinha renda, uma renda muito fraca. E hoje, a partir do momento que a gente começou a trabalhar com açaí, a gente viu melhoria de vida nas casas das pessoas. A gente vê que as pessoas consomem mais”, afirma Marcos.
Com a incerteza do comércio açaizeiro e a escassez da entressafra, ele concilia o trabalho nas feiras com o de barqueiro fazendo transporte escolar dos estudantes das ilhas. “O açaí dá dinheiro pra gente apenas no período da safra, depois fica bem difícil, na entressafra tem dia que a renda vai a zero”, explica.
Embora o açaí da Amazônia movimente milhões de dólares e conquiste o mundo, o dinheiro e os benefícios ainda não chegam aos que trabalham diretamente com o fruto. Em meio à oscilação de preços, sazonalidade e intermediários, as famílias ribeirinhas seguem dependentes dessa produção, mas enfrentam dificuldades para aproveitar integralmente o potencial econômico gerado pelo “ouro preto” da Amazônia.
Esta reportagem foi desenvolvida por meio da iniciativa Bolsa-Reportagem, parte da cooperação técnica entre a Vale e o Canal Futura, com o objetivo de fomentar a produção e amplificar o alcance de informações e conteúdos sobre o enfrentamento à pobreza extrema.
Charles Teles: da derrubada de árvores a uma vida em conexão com a floresta
“Antes trabalhava como operador de motosserra. Uma árvore que levou 100 anos para crescer, eu derrubava em 20 minutos e aquilo não era bom”

A história de Charles Teles, 47, com a Ilha do Combu começou antes mesmo do seu nascimento. Sua mãe, uma moradora de Acará, um pequeno município próximo à Belém, capital paraense, estava a caminho da maternidade quando o bebê decidiu nascer. Dentro de um barco nas proximidades da ilha, no meio do rio Guamá Charles veio ao mundo. “Eu nasci dentro de um barco nessas águas. Quando minha mãe chegou aqui perto, eu quis nascer”, afirma.
Charles se mudou há 24 anos para a ilha após se casar com Iracema dos Santos, uma filha do Combu. Juntos, eles tiveram 6 filhos e depois de uma longa jornada encontraram um novo caminho para gerar renda para a família no turismo, mostrando aos visitantes a riqueza da vida ribeirinha.
O trabalho de Charles e sua esposa é mostrar o que a floresta pode oferecer, não apenas em termos de paisagens, mas também de cultura, artesanato, conhecimento ancestral e recursos naturais como o açaí, o cacau, a seringueira, a andiroba e as abelhas que ele agora cria no meliponário da família.


Há seis anos, Charles passou a empreender no turismo na Ilha do Combu, oferecendo uma experiência imersiva para os visitantes. Dentro do turismo de experiência desenvolvido pela família, a vivência com o açaí é a principal renda e envolve contar a história do açaí nativo de várzea, mostrar o processo de colheita, processamento e preparação com a participação direta dos visitantes, e finalização com a experiência de comer o açaí da forma tradicional paraense na beira do rio.
A história de Charles com a floresta nem sempre foi amistosa. Durante 24 anos, ele trabalhou como operador de motosserra, cortando árvores para ajudar as comunidades a construir casas, pontes e barcos.“Às vezes eu tenho vergonha de contar como eu trabalhava. Eu destruía a floresta. Uma árvore que levou 100 anos para crescer, eu derrubava em 20 minutos e aquilo não era bom”.
Além deste trabalho, Charles atuava em várias áreas diferentes. Ele colhia açaí para vender para o atravessador, pescava quando necessário, e fazia outros serviços temporários fora da comunidade. Tentou empreender com um bar, mas nada, tudo era muito desgastante e não gerava uma renda que proporcionasse qualidade de vida para sua família.
“Percebi que estava ficando doente devido a esse trabalho ser muito forçado. Me dava uma renda, mas aquele dinheiro parecia amaldiçoado, não conseguia fazer nada com ele”. O sentimento fez surgir em Charles o desejo de mudar de vida.
Oportunidade, transformação e superação

Em 2020, no auge da pandemia de Covid-19 e após uma grave doença, Charles viu uma nova oportunidade surgindo. Com o apoio de uma amiga que escreveu um projeto e o inscreveu em um edital da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB) do Ministério da Cultura, voltado para a cultura alimentar. O dinheiro recebido através do edital permitiu que a família deixasse o antigo trabalho para investir no turismo e na preservação do modo de vida ribeirinho e suas tradições. “Foi preciso eu adoecer para enxergar o mundo de forma diferente, foi preciso alguém me apontar outro caminho para viver”, reflete.
A oportunidade fez Charles voltar para a sua ancestralidade, procurar os mais velhos de sua família e comunidade para ouvir mais sobre a história da comunidade e o uso do conhecimento da floresta para enriquecer seu trabalho. “Percebemos que as pessoas que vinham de fora queriam ter esse contato com as pessoas da floresta e ouvir nossas histórias. Eles queriam viver a experiência e conhecer o passado também”, diz Teles.
A reconexão com a ancestralidade foi um passo fundamental na sua nova trajetória. Ele se lembra de ver seus pais e avós utilizando ervas da floresta para fazer banhos terapêuticos conhecidos na região como “banho de cheiro”. Essa tradição havia se perdido ao longo dos anos, agora, Charles percorre as matas colhendo essas mesmas plantas para receber os turistas que o visitam com o tradicional banho.
"Foi através do turismo que nossa vida mudou, e eu não quero ser beneficiado sozinho”, reflete Charles. Ele lembra de quando tudo começou com uma pequena mesa em frente à sua casa, onde vendia artesanatos simples. Aos poucos, ele e sua esposa foram expandindo o negócio, mostrando que havia muito mais para compartilhar com o mundo do que apenas o artesanato: o açaí, o cacau, as abelhas, as ervas medicinais e a sabedoria ancestral.
Atualmente, seu espaço expõe o trabalho de outras famílias do Combu e até de ilhas vizinhas. “Quero que a comunidade cresça também. É importante a gente se unir para que essa grana que vai vir pra cá chegue até nós", diz Teles.
O ribeirinho afirma que a Amazônia em pé tem muito mais a oferecer do que no chão. "Hoje, eu vivo 100% da floresta. E ela só faz sentido se estiver em pé", conclui ele, com a serenidade de quem encontrou o caminho certo após uma longa jornada de aprendizado e superação”.
A história de Charles Gerson é uma prova de que o conhecimento ancestral e o respeito pela natureza podem ser a chave para uma vida mais sustentável e próspera buscando preservá-la para as gerações futuras.
Conheça mais sobre o trabalho de Charles no perfil @ygara_artesanal
Esta reportagem foi desenvolvida por meio da iniciativa Bolsa-Reportagem, parte da cooperação técnica entre a Vale e o Canal Futura, com o objetivo de fomentar a produção e amplificar o alcance de informações e conteúdos sobre o enfrentamento à pobreza extrema.