A jornada das travestis nas comunidades maranhenses
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Em um estado onde a violência contra pessoas LGBTQIAP+ aumentou 50% nos últimos anos, a população de Caxias (MA) se organiza para garantir os direitos e a inclusão das pessoas trans. Por meio de instituições como AGLEPS (Associação de Gays, Lésbicas e Profissionais do Sexo) e UPTT (União de Pessoas Trans e Travestis), ao lado da Defensoria Pública, a comunidade atua para acolher, formar e, assim, romper o ciclo de exclusão social e econômica das pessoas trans.
Raianny da Silva Santos: da sobrevivência à autonomia na beleza
“Decidi que era hora de mudar. Eu mereço andar na rua à luz do dia e ser respeitada pelo que faço”
Por Joilson Bruno
Do leste maranhense, nascida no povoado Sossego, a caxiense Raianny da Silva Santos, 24 anos, teve uma infância marcada por dificuldades e pela luta por aceitação em um mundo que por muitas vezes a ignorou.
“Com cinco anos de idade, já me via como mulher. Me vestia com roupas femininas da minha mãe, escondida, sem ela saber”. Essa busca por identidade não foi fácil e, desde cedo, Raianny enfrentou a violência da intolerância, um problema que não é isolado, mas parte de um contexto mais amplo de discriminação enfrentado por mulheres trans no Brasil.
A transição de Raianny começou em um contexto de vulnerabilidade, com hormônios adquiridos sem acompanhamento médico. “Comecei a me transicionar aos dez anos, irregular, nessa época também sofri muito preconceito dos meus colegas de turma, os meninos me jogavam papeis, pedras e me xingavam.”

A escola, que deveria ser um espaço de aprendizado, tornou-se um campo de batalha. O Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil aponta que esse tipo de violência na infância e adolescência não é um caso isolado. “Com 12 anos, desisti da escola, porque não aguentava mais”.
A adolescência de Raianny foi marcada pela prostituição, uma forma imaginada de sobrevivência que começou cedo. Enfrentando desafios sozinha e com altos custos para sustentar sua transição de identidade de gênero, surgiu uma proposta de trabalho que parecia uma oportunidade única.
Um convite que a pegou de surpresa, veio de uma mulher, que a levou a uma casa de prostituição em Minas Gerais, quando ela ainda tinha apenas 12 anos. Ela lembra: “pagou passagem, tudo direitinho”.
Raianny passou anos submetida à prostituição, enfrentando uma rotina perigosa, exposta diariamente a violências como roubo, estupro e até morte. Mesmo recebendo auxílio da cafetina, o mundo da prostituição revela o lado mais sombrio da natureza humana, especialmente para mulheres trans, que muitas vezes são expulsas de casa e não aceitas pela sociedade.
Elas se tornam invisíveis para muitos e descartáveis para aqueles que ignoram a lei, é o que revela o Mapeamos Mortes e Violências LGBT. Raianny relata que, entre os 12 e 16 anos, frequentemente aceitava usar drogas. “Nós éramos conduzidas por homens casados a utilizar drogas para conseguir girar a noite toda”, relembra.
A expressão "girar a noite toda", na linguagem informal das pessoas trans, se refere a sair à noite para socializar e trabalhar em boates ou nas ruas.
Esse termo abrange tanto momentos de diversão quanto atividades relacionadas à prostituição, refletindo uma vivência noturna e a busca por oportunidades de ganhar dinheiro nesses ambientes.

Apesar de muito jovem, Raianny respondeu todas as perguntas como se falasse de um passado distante e dando a impressão que viveu muito, cheia de conselhos de resiliência e esperança. Desde cedo, mulheres trans enfrentam um cenário de vulnerabilidade, expostas a crimes de ódio, agressões físicas e psicológicas. Essa realidade reflete um nível alarmante de violência e discriminação que marca suas vidas.
Apesar dos desafios impostos pela vida noturna, Raianny traz a felicidade de ter realizado o sonho de se transformar. Em suas redes sociais, ela adota o emoji da borboleta como símbolo, remetendo à metamorfose e à dor que a lagarta enfrentou antes de alcançar a beleza de sua melhor versão. Essa metáfora encapsula a resiliência e a busca por reconhecimento e respeito em meio às adversidades.
A borboleta Raianny conseguiu a prótese para os seios já aos 18 anos e não demorou muito para retornar a Caxias depois disso.
Além das vivências em Minas Gerais, também teve uma passagem por São Paulo, onde ela conta que a prostituição também era online e com isso começou a aumentar a quantidade de clientes, divulgando vídeos pela internet. Durante a pandemia da Covid-19, ela voltou para Caxias.
“Trouxe dinheiro para me sustentar, mas quando acabou, percebi que só sabia fazer isso e me perguntei: será que sou só isso? Foi quando tomei a decisão que eu sou Raianny, e posso ser mais”.
O desejo de mudança levou Raianny a colocar em prática o curso que cruzou sua vida, o de cabeleireiro que fez em 2016, no Instituto Ana Hickman, em São Paulo. “No início, enfrentei preconceitos. Muitas clientes saíam ao saber que eu era trans. Mas persisti. Cada cabelo que eu atendia era uma maneira de mostrar que sou mais do que os outros pensam de mim”, relata.

Com dedicação e coragem, Raianny decidiu abrir seu próprio negócio, mesmo que pequeno, mas repleto de esperança de se estabelecer. Ela se orgulha e diz ser a primeira mulher trans a abrir um salão de beleza em Caxias.
“Quando montei meu salão, foi muito difícil. As clientes não apareciam, mas eu não desisti. Cada dia representava uma vitória”. O espaço que ela criou hoje reflete uma mulher que lutou para conquistar seu lugar na sociedade e, mesmo morando de aluguel em um bairro periférico de Caxias, consegue se manter firme.
Raianny fala sobre a relação com sua família, que evoluiu ao longo do tempo. Essa transformação foi fruto de uma luta pessoal intensa, onde o respeito e a aceitação foram conquistados. “Consegui quebrar várias barreiras. Minha avó, que era um dos meus piores problemas, já me trata pelo nome feminino. Minha mãe me apoia e sai para todos os lugares comigo.”
Além das vitórias pessoais, Raianny também se preocupa com a situação das mulheres trans em Caxias. Ela destaca que, apesar do aumento do reconhecimento da identidade de gênero trans, a violência persiste. “Ainda existe preconceito, mas as pessoas estão mais acostumadas a ver mulheres trans nas ruas, estudando e trabalhando. Na minha época, era impossível sair durante o dia sem ser alvo de chacota ou violência. Agora, as coisas estão melhores, mas precisamos continuar lutando por respeito e direitos.”
A mensagem que Raianny quer passar para outras mulheres trans é o da educação e a resiliência. “Estudem muito, trabalhem e não liguem para o que dizem. O caminho não é fácil, mas a persistência vale a pena. A vida é uma luta constante. Para nós, é preciso muito mais esforço para alcançar o que é básico para os outros”.

Raianny luta para afirmar seu lugar na sociedade, emergindo como um símbolo de empoderamento e inspiração para a comunidade LGBTQIA+ em Caxias. Sua história evidencia que, apesar dos numerosos desafios, é possível pavimentar um caminho pautado por dignidade e respeito, específico de exemplo para muitos.
Esta reportagem foi desenvolvida por meio da iniciativa Bolsa-Reportagem, parte da cooperação técnica entre a Vale e o Canal Futura, com o objetivo de fomentar a produção e amplificar o alcance de informações e conteúdos sobre o enfrentamento à pobreza extrema.