Por que a distorção Idade-Série é maior entre meninos negros?
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A legislação brasileira prevê que as crianças devem ser matriculadas na escola aos quatro anos, passar para o Ensino Fundamental aos seis e aos 15 anos, ingressar no Ensino Médio. Essa política de Estado entrou em vigor no Brasil a partir de 2013, mas essa linha do tempo não contempla 30% de meninos negros brasileiros. A distorção Idade-Série atinge sete milhões de estudantes no Brasil. Ela acontece quando o aluno tem dois ou mais anos de atraso escolar. Mas o que leva tantos meninos negros a abandonarem a escola? Por que a distorção Idade-Série é maior entre meninos negros?

Estímulo
Os estímulos educacionais e sociais são distintos entre meninos e meninas. O Pisa, estudo comparativo de conhecimentos aplicado em escolas, revelou que meninos de 15 anos são mais propensos a ter fraco desempenho escolar que as meninas. Quando analisado o tempo dedicado ao dever de casa, por exemplo, eles gastam uma hora a menos que elas nessas atividades. E investem mais tempo em jogos eletrônicos (60% dos meninos), enquanto elas escolhem ler no tempo livre. Índices do Pisa mostram o resultado dessas diferenças. Segundo o estudo, as meninas obtiveram 30 pontos a mais em proficiência em leitura que os meninos. O que equivale a uma diferença de quase um ano de estudos.
“A proficiência em leitura é o alicerce sobre o qual todo o aprendizado é construído. Quando meninos não leem bem, o seu desempenho em outras disciplinas escolares também sofre“, informa o relatório do Pisa, publicado em 2018.
Expectativa
Estudo feito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com dados do Pisa identificou que o percentual de alunos com pior desempenho é significativamente maior em escolas onde professores esperam menos de seus estudantes. No Brasil, um estudo conduzido pelo Instituto Ayrton Senna revelou que quanto mais baixo o nível socioeconômico dos estudantes, menor a expectativa dos professores sobre a continuidade da educação formal. Vale lembrar, que, no país, entre os mais pobres, a maioria é negra.
A coordenadora do núcleo de Pesquisa e Avaliação da Fundação Roberto Marinho, Rosalina Soares, explica parte da falta de interesse dos meninos nos estudos.
“Como geralmente o menino tem menor compromisso cultural de atender expectativa na escola, ele é a manifestação do desinteresse pelos estudos. A escola não faz sentido e aí ele começa a ter um comportamento indisciplinado. O professor passa a ter uma expectativa menor em relação ao desempenho deste estudante. E ao invés da escola ver neste desinteresse um sinal de alerta, ela já o rotula, o coloca como indisciplinado e isso também produz o fracasso escolar“, diz Rosalina.

Realidade Socioeconômica e Racial
Outra razão para o descompromisso de meninos negros com atividades escolares tem origem socioeconômica interseccionada com o racismo. Meninos negros são mais cobrados a comporem o orçamento familiar. Segundo dados obtidos na plataforma JET, eles representam mais de 60% das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. Esse também é um dos motivos pelo qual a distorção Idade-Série é maior entre meninos negros.
Foi o que aconteceu com J. Aos dez anos, ele cursava o sexto ano em uma escola particular de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Na escola, era rotulado por alguns docentes como um menino “levado“, mas depois de receber mais atenção de um professor, a relação com os estudos mudou e ele melhorou o desempenho. Porém, no meio do ano seguinte, a família o tirou da escola particular e o colocou para trabalhar durante o dia e estudar no Ensino Público à noite. Essa mudança aconteceu quando J. tinha 12 anos de idade. Ele é um menino negro que sente na pele essa distorção Idade-Série maior entre meninos negros.
“Há um raciocínio em parte da sociedade de não querer gastar dinheiro na educação desse menino. Este exemplo ilustra isso muito bem. Há uma normalização do fracasso escolar dos meninos negros. Há uma marginalização desses meninos dentro da escola, com frequência, os consideram meninos sem “eira nem beira”, que falam demais, que são malandros. A sociedade não diz que é uma questão racial, mas esta sociedade não questiona o fato de uma criança de 12 anos estar trabalhando, quando ela é negra“, completa o professor de história, mestre em relações étnico-raciais, João Marcos Bigon.

Como mudar este cenário?
Educadores e educadoras precisam ter sensibilidade para entender que existe uma estrutura social, econômica e emocional que empurra meninos negros para fora das salas de aula. Aprender a lidar com as dificuldades enfrentadas por esses meninos, é fundamental para garantir o direito deles de estudar na idade certa. A raça precisa ser um ponto central durante o desenvolvimento de políticas públicas para que sejam eficientes. É o que defende a pedagoga, Tiffany Odara, coordenadora pedagógica do Redes Vivas.
“O professor tem que ser um pesquisador, entender que a grade curricular não vai dar conta de todas as vivências. É preciso levar em consideração atores sociais envolvidos nesse processo, fazer uma análise para que o professor não seja barreira e sim uma ponte para o estudante“, ressalta Tiffany.
A existência de leis como a 10.639, que obriga o ensino de culturas e histórias de matriz africanas nas escolas é um ponto essencial. Para além disso, também é necessário compreender os reflexos dessa história na realidade de jovens negros. A partir disso, desenvolver ações focadas nesses meninos pois as consequências do abandono escolar são graves como ao alto índice de assassinatos de jovens negros no país. Este processo de exclusão se conecta diretamente com o fato de jovens e adolescentes negros migrarem para atividades ilegais ou serem vítimas de abusos e assassinatos praticados por forças policiais.
“O tratamento dado aos meninos negros é diferente. É uma relação da instituição e da mentalidade social de adultização, aceleração da relação desse menino com um mundo de forma precoce. Da mesma forma que há o processo de hipersexualização das meninas negras, há essa problemática no sentido de pegar esses meninos e jogar num campo de pessoas suspeitas, violentas e malandras. Os transformam em mimi adultos“, complementa o professor de História, Mestre em Relações Etnico-Raciais, João Bigon.

No EJA, mais desafios…
Na outra ponta, a Educação de Jovens e Adultos tem se tornado a saída para os homens negros que passaram pelo processo de exclusão escolar. Não por acaso, eles são maioria entre alunos da Educação de Jovens e Adultos, representam 70% dos estudantes de EJA.
Mesmo neste lugar de segunda chance, homens negros enfrentam desafios e seguem sofrendo as consequências da maior distorção Idade-Série entre meninos negros. Com base nos dados do INEP é possível observar que o número de instituições que oferecem esta modalidade de educação caiu 34 %, nos últimos dez anos. Novamente, a educação brasileira dá as costas para estas pessoas que veem na EJA uma esperança de concluir os estudos.
“Depois que eles saem da escola para ajudar financeiramente em casa, eles procuram a EJA como uma esperança. É um alinhamento com o passado. E nesta etapa, há um sucesso porque eles acreditam que vão conseguir. A educação é único mecanismo de inclusão social possível. É necessário “deseducar” essa educação atual para realinhar, remodelar e incluir homens negros na sociedade“, finaliza a pedagoga Tiffany Odara.