Artigo: Por uma educação antropofágica

Imaginem um jantar cujo prato principal são rãs. À mesa, artistas e intelectuais irreverentes sonham com um Brasil moderno. Aberto. Internacional e regional, ao mesmo tempo. Plural e singular na sua identidade. Nem dado momento, entre taças de espumante e conversas afiadas, uma das convidadas então levanta-se de sua cadeira e, num misto de humor e horror, exclama: Mas que coisa! São rãs, mas parece que estamos comendo pessoas!

A epifania é real aconteceu há aproximadamente cem anos, pouco depois da Semana de Arte Moderna de 1922. A imagem é contada pelo historiador Rudá K. Andrade, neto dos escritores Oswald de Andrade e Patrícia Galvão (a Pagu), expoentes do grupo dos cinco, que iniciou o Modernismo no Brasil. O livro “Oswald De Andrade: Como devorar o mundo” (edição própria , 2021) destila segundas intenções ao misturar cultura e gastronomia. Quem se levanta à mesa na verdade, é a pintora Tarsila da Amaral, e se dirige a Oswald. Esse seria o mito inicial do pensamento atropofágico, ou seja, canibal, que guiou o Modernismo. Mas qual a ideia tão interessante no canibalismo?[Quebra da Disposição de Texto]

A metáfora foi usada para a criação de uma identidade nacional moderna. O Brasil da década de vinte se via oras preso a um regionalismo romântico ufanista, ora embriagado do racionalismo europeu; em meio a grandes guerras. Era preciso “devorar”, ou seja, “comer” a cultura local e a global; tudo interessava na busca pela identidade na construção de uma literatura, teatro, música e artes plásticas modernistas, autênticas, e representativas de um Brasil impulsionado pela indústria, e vendo suas grandes cidades nascerem.

“Só a Antropofagia nos une”, escreveu Oswald na abertura do Manifesto Antropófago (1928). A educação de então seguia em um modelo industrial, restrita e tecnicista.

Pintura de um homem.
Oswald de Andrade pintado por Tarsila do Amaral – Reprodução

Entretanto, o reflexo imediato mais explícito do Modernismo na educação se deu no Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova (1932), em que o baiano Anísio Teixeira, dentre um grupo de intelectuais assinantes, propõem uma educação universal que responda a desafios semelhantes aos do Modernismo. Há pontos importantes no documento, mas alguma polêmica e incoerência também.

O debate sobre o que queremos da educação brasileira, e o papel do mundo digital nisso, está mais vivo do que nunca. Tal qual os pensamentos modernistas sobre o que significa ser brasileiro em pleno século 21.

A antropofagia-  aquela como símbolo da potência da inovação da Semana de 22 – não aconteceu na educação brasileira ainda. Conservadorismo e inércia nos jogaram para um outro caminho em muitas décadas. Sobram boas experiências isoladas, referências e legislações no Brasil, mas precisamos ainda correr atrás do impulso de uma escola pública laica, gratuita, universal e contemporânea.

O resultado é que na realidade híbrida, conectada, complexa, ágil e abundante em signos em que vivemos, apenas uma leitura ousada, libertária e até arriscada da BNCC e Novo Ensino Médio, dará conta da educação de características modernistas. Mais uma vez, gestores e educadores estão no comando.

Pintura de uma mulher que está vestida com um roupão vermelho. O fundo do cenário é azul.
Tarsila do Amaral – Autorretrato, 1923 (também conhecido como Manteau Rouge). Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

A começar, uma educação antropofágica não pode relegar a comunidade (o local), tampouco o global (ciberespaço) a uma noção de “realidade de segunda mão”. É nesse atmosfera híbrida que os estudantes encaram o mundo, e é nela que a escola deve estar. Compreender as potências e riscos do digital, como um linguagem capaz de gerar cultura se faz urgente. Bem como aproximar a escola da comunidade – derrubando seus muros.

Nesse sentido, na distopia de globalização da internet sublinhar a cultura local e a internacional é fundamental. Como o congado pode dialogar com os batuques de tambores da Guiné, ou com a música da Beyoncé? 

Por outro lado, ainda no Modernismo, o Manifesto Pau-Brasil, anterior ao Antropófago, clama por “Aprender com a floresta. Aprender na escola”. Como nos relacionamos com o meio ambiente, com nossa comunidade, com o outro? Como tecemos trilhas digitais e físicas de aprendizado?

A Semana de 22 ainda não acabou, como propõe o jornalista Marco Augusto Gonçalves em seu livro.  A educação antropofágica deve prezar por uma escola que passe pelo fazer, pensar e sentir. De caráter multicultural e poliglota. E que acompanhe o estudante numa “digestão” bem feita da compreensão do Brasil, mas também do mundo. Ainda perseguimos esse ideal modernista de autonomia e saber social.

Escola invisível

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